sábado, 7 de janeiro de 2012

A Louca levantou... e ela resolveu escrever complicado hoje

"Existem duas de mim:
A louca e a santa
Quando uma de nós vai dormir
A outra levanta."

Você já odiou alguém? Já odiou alguém de verdade? 
E alguém que você amou, você já conseguiu odiar verdadeiramente?
Odiou tanto ao ponto de perceber que você sofreria imensamente se ela morresse, mas, ainda assim, você a preferia morta? 

Sim, você deve estar pensando que eu [e]S[t]OU má.

Parecem palavras chocantes para se iniciar um texto, mas os que me conhecem¹ não se chocaram, ao contrário, devem estar esperando uma explicação. Aos que se chocaram, não preciso que sigam lendo, visto que nada do que eu venha a dizer apagará de suas mentes o seguinte fato [interpretado erroneamente]: eu quero que alguém morra

Eu busco construir este texto para esclarecer, de maneira confusa, certas coisas que são confusas por natureza e as quais não teriam a menor graça se fossem esclarecidas como algo que se quer ver numa sala escura e simplesmente se acende a luz. 

Não. É necessário que eu complique tudo para que percebam que falo de coisas difíceis. Então, é por esta razão que eu entro na sala segurando uma vela e iluminando as coisas aos poucos. 

Logo que eu entro na sala, sinto medo. Vejo algo se mover bem a minha frente. Conforme me aproximo, aproxima-se igualmente. Sou eu, ou melhor, meu contrário. Um espelho. Poucas são as vezes em que vemos nosso próprio rosto e é sempre algo incomum. Dessa vez, não foi diferente. Detive-me diante dele [e de mim] por alguns minutos. Olhei para ela, que era eu, e imaginei que lá dentro tudo sempre havia acontecido ao contrário do que foi aqui fora. Sempre que eu andei para a esquerda, ela andou para a direita, portanto, nossos caminhos deveriam ser os mais longes possível. E, no entanto, estávamos ali, uma diante da outra, porque nossos caminhos avessos nos trouxeram ao mesmo lugar. É como se cada vez que eu tivesse dito sim, ela tivesse dito não e, mesmo assim, obtivéssemos os mesmos resultados.

Senti medo, vi que nada importava, todas as possibilidades ter-me-iam levado para onde levaram. Sorri para minha imagem, automaticamente, creio, porque é isso que fazemos quando temos uma dor e não queremos que ninguém perceba. Deixei de lado o espelho e segui.

Andei alguns passos e parei diante de uma estante. Nela, havia apenas um livro. Era o meu. De maneira impressionante, contava detalhadamente coisas a meu respeito, coisas que eu não lembrava. Havia todos os nomes, tudo o que eu fiz e pensei. Fiquei imaginando se mais alguém o teria visto e fiquei com vergonha. Folheando-o percebi que algumas das coisas que me deram estavam ali, pétalas de flores, cartas, bilhetinhos, vales-beijos, o recibo daquele restaurante visitado nas férias, algumas outras coisas... Comecei a folheá-lo mais rapidamente, já desesperada por não ver ali nada que me trouxesse alegria. Foi então que eu percebi... não era o que eu via no livro que me deixava triste, mas a maneira como eu olhava o livro. No fundo, eu sabia que fui feliz enquanto vivia o que lia naquelas linhas, mas - agora - ao lê-las, felicidade alguma se apresentava ao ambiente. Como uma ideia que surge do mais absoluto nada, eu parei. Parei de folhear o livro e entendi que já não me bastava mais "virar a página", o que eu precisava mesmo era fechar o livro e começar um novo. Larguei-o. Segui pela sala.

Uma caixa. Uma caixa grande. Antes de abri-la, tive certeza de todas as coisas que eu encontraria lá dentro. Abri a caixa com um sorriso. Levantei a tampa com cuidado e aproximei a vela. Não acreditei. Não havia nada no interior. Aliás, havia. Um papel. Desconfiada, peguei-o. Li a seguinte mensagem: Não é necessário ver ou tocar essas coisas que você esperava, o que sentiu ao se lembrar delas é o que basta. Como discordar de tão grande verdade? Assim são todas as coisas. Não importa o vazio, se - ao relembrar - sentimos alegria, prazer ou felicidade. 

Por fim, eu encontrei uma tela. Quando me aproximei, um vídeo começou a passar. Sentei diante daquela tela, apaguei a vela e, atentamente, eu assisti. Era uma festa, ou melhor explicando, eram várias festas. Como se alguém houvesse gravado todas as festas a que eu fui e as colocado num único vídeo, alternando as cenas. Eu pude me perceber em todas elas, apesar de não lembrar. Em verdade, acho que nunca estive naquelas festas. Não pude deixar de notar que, nas cenas, todos sorriam, dançavam, bebiam e conversavam e eu também, mas, vendo-me no vídeo eu era capaz de saber o que eu estava sentindo apesar dos sorrisos. Eu estava triste. Em cada festa, a gravação mostrava um menino, rapaz ou homem me olhando. Meu pensamento distante jamais os notou. A minha preocupação com "ninguéns" havia, por anos, impedido que eu visse os alguéns. A minha garganta secou. Pude entender o que o vídeo me queria mostrar: que eu perdi tempo demais esperando por pessoas que estavam em outras festas, olhando para outras pessoas e que eu nunca me importei com os que estavam na minha festa, admirando-me. 

O vídeo desligou. Escuridão. A vela. Onde está a vela? Não conseguia respirar. Medo.

De repente, a luz começou a invadir a sala. Parecia que eu respirava melhor, O ar era fresco. As janelas estavam, agora, abertas. E lá fora havia árvores. O que eu vi na sala, quando escura, era diferente do que eu via agora. Percebi que, de frente para o espelho da entrada, havia outro espelho. Quando parei diante dele, pude notar que, quando saí para a direita, um dos reflexos saiu para a esquerda e o outro [que era o reflexo do reflexo], deu as costas para nós duas.

Na tela, nada. Estava desligada. Quando liguei, transmitia a programação normal da televisão. Desliguei-a. E a caixa, agora, parecia só uma caixa qualquer. O papel do interior havia sumido [refiro-me ao sumiço material, uma vez que o conteúdo jazia em mim - em alguma ou em toda parte de mim].

E foi no exato momento em que a luz invadiu a sala que eu percebi porque foi que eu passei a ver a sala de modo diferente: a Louca havia morrido. 

Eu amei a Louca, é bem verdade. Ela era tudo que a santa tinha vontade de ser. Mas ela não soube ser má como se deve ser. Ela não serviu. Foi uma louca gauche. Definitivamente, não serviu. Eu passei a odiá-la. Queria ser santa outra vez, porque a Louca fingia e as pessoas acreditavam, ao passo que a santa era verdadeira e as pessoas duvidavam. As coisas da sala me mostraram que eu não podia mais fingir, eu não sabia ser louca, eu era romântica demais pra isso.  
Como deu para perceber, eu não queria que ninguém morresse. Ninguém, além da parte de mim que me estava fazendo mal.
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¹ eu disse "os que me conhecem" e não os que pensam que me conhecem ou os que conhecem o que eu, as vezes, ensaio para parecer e que, por azar [ou sorte], acreditam na minha farsa.


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